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O trabalho psicológico com pessoas enlutadas: um relato de experiência

By 24 de novembro de 2025ACOLHIMENTO

O trabalho psicológico com pessoas enlutadas: um relato de experiência

PROALU - Programa de Acolhimento ao Luto

O trabalho psicológico com pessoas enlutadas: um relato de experiência

Por: Leonardo Ferreira Galvão Tavares

Há um silêncio próprio do luto. Um intervalo entre a vida que se conhecia e aquela que se torna possível depois da perda. É nesse terreno árido, muitas vezes inabitável, que o trabalho do PROALU se inscreve, não para preencher o vazio, mas para oferecer um lugar de escuta, onde a dor possa encontrar forma e o desamparo, palavra.

O Programa de Acolhimento Psicológico ao Luto, construído sobre o gesto ético da escuta e sustentado pela sensibilidade teórica e comprometimento clínico de profissionais voluntários, tornou-se, ao longo do tempo, um território simbólico para experiências de perda nas mais diversas configurações, acompanhando pacientes atravessados por mortes inesperadas e de naturezas diversas, muitas vezes inimagináveis.

Entre os atendimentos realizados, aparecem lutos de filhos, cônjuges, pais, avós, perdas múltiplas que trazem consigo a insistente questão: como seguir? Cada pessoa, em sua singularidade, responde de um modo. E cada escuta, ao se oferecer como testemunha, também é transformada.

O luto manifesta-se em múltiplas faces, como uma experiência de desamparo profundo. Diante da morte, desfaz-se a trama simbólica que organizava a vida e compunha a identidade do sujeito. O mundo, antes familiar, se estranha. Para alguns pacientes, a perda veio acompanhada de um rompimento abrupto, um corpo que adoece de forma fulminante, um diagnóstico que não dá tempo para o adeus.

Em outros casos, a ausência se construiu aos poucos: a doença crônica, o envelhecimento e suas comorbidades, a rotina do cuidado que antecede o luto e o prepara, mas não poupa da dor.

No atendimento psicológico, o luto se manifesta em gestos sutis: a pausa entre frases, a respiração presa, a tentativa de narrar o indizível, lágrimas que inundam e transbordam. Uma paciente, viúva após décadas de casamento, falava da morte do marido como a perda da “coluna” que sustentava sua casa e seu corpo. Outra, que acompanhou a filha jovem em uma internação hospitalar traumática, repetia o mesmo fragmento de memória: o corredor vazio onde esperou, em vão, pela ajuda que não veio. O que se revela nessas falas não é apenas o sofrimento, mas a tentativa de reconstituir uma narrativa quando o sentido parece ter se esvaído.

O luto, na clínica, não é um sintoma a ser superado, mas uma travessia que pede testemunho. A experiência de ser psicólogo voluntário no PROALU é atravessada pela tensão entre o tempo institucional — breve, limitado a alguns encontros — e o tempo do sujeito, que é imprevisível. O desafio está em acolher o que é possível emergir nesse recorte, sem forçar a elaboração e encontrando diferentes estratégias de estar-com.

A escuta clínica, nesse contexto, não busca acelerar o processo, mas acompanhar o movimento de cada um em direção ao que pode ser simbolizado. Há pacientes que, após três ou quatro encontros, conseguem nomear algo que antes era apenas dor muda ou saudade doída; outros permanecem em silêncio, encontrando na presença do outro, no encontro empático, um modo de sustentar-se e existir.

O psicólogo aprende, assim, a reconhecer que há lutos que não se encerram, apenas se transformam. Aprende também que o trabalho é preservar a dignidade de quem sofre, garantindo que o sofrimento possa ser reconhecido sem ser patologizado.

Nos atendimentos realizados, o luto se apresentou em múltiplas faces: a mulher que perdeu o marido e herdou, junto à saudade, a tarefa de cuidar da mãe centenária, ela dizia precisar “recalcular a rota, mas sem saber para onde”. A mãe que transformou o quarto da filha falecida em um memorial, onde elementos preservam o vínculo que o tempo não dissolve. A profissional de saúde que perdeu seu bebê pouco tempo após o nascimento e, ao retornar ao trabalho no hospital, reencontrou o trauma nos corredores onde hoje acolhe outras mães enlutadas. O homem que chegou ao PROALU em busca de uma escuta para amenizar seu ódio, mas cuja dor se confundia com um sofrimento psiquiátrico anterior à perda, desafiando os limites e marcando a importância de encaminhamentos adequados.

A cada encontro, o gesto de confiar a própria dor à escuta de um outro, quando partilhado, deixa de ser apenas ausência para se tornar experiência e memória viva. No trabalho com pessoas enlutadas, há uma dimensão que ultrapassa a técnica. O psicólogo é convidado a sustentar um vazio e um sofrimento dilacerante. Às vezes, o acolhimento se faz em gestos mínimos: o nome de quem partiu sendo dito em voz alta pela primeira vez, a lembrança de uma risada, a confissão da culpa pela morte do ente querido.

O encontro na clínica se torna um abrigo, onde juntos podem tentar semear um campo devastado. O luto, quando encontra forma de representação, palavra, começa a se deslocar: deixa de ser ferida aberta e passa a ser cicatriz que fala. Nessa passagem reside o sentido ético da clínica do luto: a clínica do testemunho.

Ser testemunha, não de quem observa, mas de quem sente e se implica naquilo que se manifesta no encontro. A prática clínica se aproxima do ato político: afirmar a importância do cuidado psíquico como direito, sobretudo em contextos em que esse tipo de sofrimento é, muitas vezes, silenciado ou invalidado.

O projeto cumpre, assim, uma função social de enorme relevância não apenas por oferecer atendimento gratuito à população, mas por devolver ao sujeito a possibilidade de ser escutado. Muitos enlutados chegam após longos períodos de isolamento, de tentativas frustradas de acesso a serviços públicos, ou de experiências marcadas por discriminação e incompreensão.

O exercício voluntário ensina também sobre os limites da intervenção e sobre a potência da escuta. Ensina que a dor não precisa ser curada para ser reconhecida. Ensina que esse sofrimento não é homogêneo, pois carrega camadas de história, cultura, fé, classe e gênero. A mulher negra que perde a filha e precisa enfrentar o sistema de saúde; o homem gay que teme ser discriminado na busca por ajuda; a idosa que carrega o duplo peso da viuvez e do cuidado com a mãe doente. Todos revelam como o luto é também um espelho das desigualdades sociais e das invisibilidades que atravessam a sociedade brasileira.

O encerramento de cada caso carrega ambiguidade: o alívio de ver alguém que reencontrou algo em si para se amparar e a melancolia de interromper um vínculo que, mesmo temporário, foi intenso e extremamente vivo. É oferecer algo de si, sabendo que o outro seguirá seu caminho, fazendo da sobra um recomeço.

O trabalho mostra que o luto não é o contrário da vida, mas a compõe. Cada relato escutado, cada silêncio sustentado, aponta para uma possibilidade de continuidade. Entre os diferentes destinos do trabalho com os enlutados, tem-se: acompanhar o outro no percurso de transformar dor em memória, ausência em representação, e perda em possibilidade de reencontrar a si mesmo.


Nota sobre o autor: Psicólogo Clínico (CRP 06/134.873) e voluntário no PROALU. Psicanalista em contínua formação, atualmente pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Especialização em Psicanálise e Relações de Gênero: Ética, Clínica e Política pelo Instituto de Pesquisa em Psicanálise e Relações de Gênero. Graduado em Psicologia pela Universidade Paulista.

“Os exemplos clínicos apresentados são narrativas compostas, sem qualquer possibilidade de identificação de pessoas atendidas.”