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O canto da cigarra

Coluna

Tecendo histórias sobre o Luto

Foto de @eber.lein_fotos

Por Marina C Smith

O canto da cigarra

Fazia tempo que eu não ouvia uma cigarra cantar ao final da tarde, no pôr-do-sol. Elas pareciam ter sumido depois que minha avó partira. Era ela quem as apreciava, saía no jardim de sua casa, colocava uma cadeira e sorvia a sinfonia das cigarras. Era um momento precioso da transição do dia para a noite, elas pareciam anunciar que mais um dia se despedia e festejavam a chegada das primeiras estrelas. Eu lembrava da famosa cigarra da fábula, que na versão do meu pai, dava uma “banana” para a formiga e ia ser uma estrela de Hollywood, pilotando um conversível chiquérrimo. Diante dessa linda cantoria, nada mais justo que virar uma celebridade, eu pensava.

Mais velha, soube que a vida da cigarra é efêmera, que seu canto era uma despedida que findava com sua morte. Talvez algum biólogo me corrija, e quem sabe ela realmente alcance o estrelato e essa teoria do canto de morte seja fofoca da formiga, mas algo me dizia que fazia sentido. Seu canto ganhou outras tonalidades dentro de mim, mais melancólicas, mas nem por isso menos belas. Comecei a apreciar sua música com maior reverência, era um presente de despedida para nossos ouvidos e minha avó percebera isso muito antes, seu ritual de final de tarde era em profundo respeito àquele ser.

O mais curioso era que eu nunca enxergava as cigarras, elas provavelmente estavam nas árvores que circundavam a casa, e pareciam ser muitas. Era o som que preenchia aquele instante, era sobre a vida e a morte que se tratava. O dia morria para a noite chegar, a cigarra cantava para acasalar e morrer. Uma nova cigarra surgiria para entoar seu canto e seguiria o ciclo de beleza e morte.

E depois parou. Parei ouvi-las e por muito tempo nem me dei conta disso. Os dias findavam naquela casa que fora de minha avó e o silêncio era o novo tom melódico. Muitas das árvores das redondezas haviam sido retiradas para o surgimento de novas casas, e não havia mais minha avó em sua cadeira, lugar cativo para acompanhar aquele canto. Elas foram embora, talvez na procura de outros ouvidos que apreciassem a solenidade daquele instante.

Já contei certa vez que a casa de minha avó fora vendida, mas não contei que uma nova casa, não muito distante, fora adquirida naquelas paragens por meu pai. Os móveis de minha avó foram habitar novas paredes e apesar de ser muito diferente da casa original, esse novo lugar trouxe o cheiro dela. E trouxe mais. Em um final de tarde, deitada na rede, escutei uma cigarra, depois escutei outra cigarra e mais outras. Larguei o livro que lia e me atentei ao canto, honrei aquele recital com alegria e saudade. Fui inundada pela gratidão de ser testemunha daquele canto e pude reencontrar minha querida avó novamente, sentada ao meu lado, ouvindo atenta o espetáculo da vida.

One Comment

  • Ricardo Smith disse:

    As cigarras há séculos indicam a linhagem matrilinear. A perpetuação das avós mães netas desfaz o apanágio da morte…Ela apenas existe pois as cigarras deixam sua casca envoltório nos troncos.

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