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Revisitando a casa submersa

By 22 de julho de 2022julho 25th, 2022COLUNA

Coluna

Tecendo histórias sobre o Luto

Foto de @eber.lein_fotos

Por Marina C Smith

Revisitando a casa submersa

Uma querida amiga sempre me diz que o luto é pendular, como em um badalo de um relógio de carrilhão, o tempo avança indo e voltando. A casa submersa foi uma coluna que escrevi quando a casa de meus avós foi vendida, só consegui escrever na terceira pessoa porque precisava de certa distância para narrar a despedida de um lugar que abrigava memórias de quatro gerações.

Hoje o pêndulo voltou, agora na primeira pessoa. Foi um sonho que puxou o pêndulo com força e escancarou crateras de minha dor. Um lado meu tentou puxar o pêndulo de volta dizendo: “Credo! Não é para tanto, ninguém morreu!”. Mas a força atrativa puxou de volta com força, “Morreu sim. Algo morreu. Acabou”.

O sonho não deixava dúvidas, estava revisitando a casa, andando pelo seu jardim que era magnífico e verdinho. Havia uma fidedignidade com a casa real que era estarrecedora, nenhum elemento destoante que denunciasse tratar-se de campo onírico, eu estava lá. Havia uma consciência de que era um retorno, e nesse primeiro momento o sentimento era de alívio. Meu refúgio estava intacto, era meu novamente, a posse de minhas caminhadas na grama e do cheiro da maresia na brisa suave. O sol podia aquecer novamente cada centímetro das lembranças, não mais ameaçadas pelo sombra da melancolia que antes apagara a vivacidade de se habitar essas recordações. Caminhava sorvendo cada detalhe para armazená-los em um estoque cujas prateleiras só guardavam tesouros.

A água, no entanto, começou a subir, a maré do luto avançava pela praia, chegava ao jardim e inundava a grama, subia com a força de um tsunami, em ondas crescentes que quase adentravam a casa, onde tive que me refugiar. Então, o mais impressionante aconteceu, a água recuou rapidamente, recolheu-se e retirou-se da casa. Era uma mensageira, e a mensagem estava dada, o jardim não existia mais, crateras profundas, como verdadeiros cânions, surgiram esburacando aquele santuário onipotente onde imaginei que poderia parar o tempo e negar a despedida. A imagem era de terra devastada e dizia algo sobre mim e minha dor. “Ninguém morreu, ninguém morreu”, repetia para mim mesma novamente, tentando empurrar o pêndulo na direção que aponta para o mundo que caminha para frente. Mas a enxurrada me arremessava novamente de volta aos meus buracos. Não havia corda de relógio que pusesse aquele badalo em outro compasso.

Acordar desse sonho foi um alívio, mas foi efêmero. Ele era límpido e didático, sem subterfúgios ou disfarces, escancarava a perda e trazia a dimensão que ela ocupava em mim. Não me poupou, acho até que tripudiou das minhas parcas defesas. O sonho fez a pele da lembrança ficar em carne viva, viva e não carne morta, um paradoxo para algo que morreu, a dor tem um pulso e pulsa latejando. Reavivou a tristeza de não poder mais voltar, não poder mais me despedir com aquele “até logo” que sempre voltava. Não volta mais. Eu tento empurrar o pêndulo mais uma vez em sentido contrário, apelando para as boas lembranças que sempre habitarão minhas memórias, mas não funciona como antídoto, parece ainda ser pouco nesse momento. Essas lembranças foram tomadas pela sombra da perda e só reforçam o pêndulo para o outro lado. Reconheço a batalha perdida e me deixo levar de volta ao encontro de meus buracos. Agradeço o sonho que deu imagem e forma para o que vivia silenciosamente e aceitei que ainda doía e que iria doer por mais um tempo.

Penso que às vezes é preciso deixar o tempo soprar e balançar no ritmo das ondas da vida, restaurando a dança do pêndulo para que na ferida aberta se possa tecer uma nova camada de pele para fazer contato com o mundo que segue em frente. Tudo parece acontecer ao mesmo tempo, a ferida abre e fecha, abre e fecha, um dia fica mais fechada que aberta e nos sentimos mais em paz, mas em outros acontece de abrir novamente. Talvez saber da existência do pêndulo seja um alento, uma hora vem e noutra vai e seguimos.

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