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O intruso na Corte

By 17 de fevereiro de 2022março 15th, 2022COLUNA

Coluna

Tecendo histórias sobre o Luto

Por Marina C Smith

O intruso na Corte

Não era incomum a família toda se reunir ao redor do projetor e assistir aos filmes caseiros de Super 8 (alguém ainda sabe o que é uma máquina de Super 8?). Na parede da sala, a imagem crescia e nós nos víamos gigantes. Gigantes silenciosos, como em um bom cinema mudo. O rolo do filme girando, transferindo cada recorte de cena para outro rolo após passar pela lente. Hoje a cena me lembra Cinema Paradiso, na época era quase rotineira- como nossos vídeos de celular atuais- mas com muito mais pompa e cerimonial. Era uma experiência coletiva, um acontecimento, ninguém armava- salvo raras exceções- um projetor de Super 8 para desfrutar sozinho da experiência.

Pois bem, havia um determinado trecho de um determinado filme em que eu gelava quando passava. Nesse fatídico recorte de uma manhã banal na vida familiar de um casal com dois filhos pequenos, meu crime estava registrado. E nunca, nunca mesmo, principalmente quando havia visitas, ele passava incólume pelos comentários dos espectadores.

Eu deveria ter uns 2 anos e meu irmão mais novo engatinhava. Vamos ao conteúdo cinematográfico digno de Hitchcock.

Cena 1: irmãozinho segura um pacote de bolachas Maria em suas mãos com um olhar guloso e muita, muita fofura saindo pelos poros e reluzindo em suas bochechas lustrosas. Ele se equilibra apoiado em um banco. A câmera aproxima em um close da fofura desmesurada (a plateia costumava suspirar nesse momento).

Cena 2: um vulto passa correndo e arranca o pacote de bolachas das mãos do bebê indefeso que cai no chão. Esse vulto tem cabelos espetados em um estranho desenho assimétrico -fruto da boa vontade em cortá-los, com zero talento para fazê-lo, da professora da escolinha da pobre criança descabelada. O bebê chora de susto. A plateia exclama e, invariavelmente, comenta: “Coitadinho!” Corta!

Cena 3: Bebê feliz, sorri com as bolachas Maria nas mãos, recebe um afago na cabeça de algum adulto protetor. A criança descabelada surge contrariada dividindo o pacote de bolachas.

Esse trecho me assombrava pela culpa, eu me sentia um monstro naquelas exibições. Obviamente era eu o vulto descabelado que não tinha que dividir apenas o pacote de bolachas, mas mamãe e papai e todo o reinado absolutista que uma primogênita usufrui, só para, em seguida, ser usurpado, por um intruso na corte. A culpa era proporcional ao ódio da perda daquele lugar tão maravilhoso. Não que esse reinado tenha durado muito, acho que era moda nem deixar esfriar o berço e já colocar outro bebê no lugar. Não resisti à alfinetada, sorry papai e mamãe, nem Freud segura a ira de uma primogênita destronada. Pois é, luto tem raiva também, e pode borbulhar e transbordar – ainda mais quando estragaram seu cabelo (ok, eu ainda não me dava conta da tragédia do cabelo quando roubei as bolachas).

O que me atormentava mesmo era o “Coitadinho” da plateia. Custava empatizar só um pouquinho com a pobre criança ladra de bolachas? Só porque eu não tinha mais minhas bochechas tão lustrosas e os cabelos encaracolados? Mas ainda tinha minhas covinhas! Aquele charme ninguém me roubaria, eu pensava agarrada ao meu orgulho ferido.

Meu consolo era que ao avançar o filme, o intruso era desmascarado acertando pobres pintinhos com sua pequena pá de areia enquanto engatinhava em nosso quintal. Era minha vingança, ele também tinha seus crimes, soube inclusive que um dos pintinhos não resistiu e outros fizeram protestos inflamados. Mas isso era boato, sempre havia alguém para resgatar os pobres pintinhos indefesos das mãos daquele bebê. Outra moda daquela época difícil de explicar hoje em dia, oferecer pintinhos – que viravam galinhas! – para as crianças em todas as feiras de animais.

Mas como nem tudo é tão preto no branco, as relações têm tonalidades que escapam às mais elaboradas paletas de cores. Mais velha, eu torcia secretamente toda noite para meu irmão aparecer em meu quarto, puxar o colchão debaixo da minha cama e se aninhar ao meu lado, um cuidava do outro naquelas noites escuras em que os medos dos monstros e ladrões (não mais de bolachas, acredito eu) eram ótimos pretextos para ficarmos juntos. E ele vinha, sempre vinha dividir o sono comigo.

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