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Coluna

Tecendo histórias sobre o Luto

Foto do arquivo pessoal de família: “Vista do Rio Dniester”

Por Marina C Smith

Diáspora

Certa vez minha avó fez uma intervenção drástica em nossos medos infantis. Eu e minha prima inventamos de achar que no banheiro da casa dela se escondia o E.T. – aquele mesmo que telefonava para casa para ser resgatado. Mesmo sendo uma criatura muito generosa e até simpática, a ideia de sermos surpreendidas no escuro por um ser de outro mundo, nos deixava apavoradas e sempre íamos em dupla ao toalete. Minha prima, um dia, jurou que vira o dedo do E.T. esticado na janela e saímos gritando para salvar nossas vidas, assombradas por nossas próprias fantasias. Minha avó, cansada desse alarde muito colorido em tons dramáticos, soltou a seguinte frase:

“Vocês não sabem o que é ter medo de verdade.”

Foi a senha para nos capturar numa curiosidade recheada de receios. Sentamos ao seu lado e dessa vez não era o livro de contos de fadas que conduzia a narrativa, era a sua própria história que até então não conhecíamos. Sabíamos que ela tinha vindo da Rússia ainda pequena, mas desconhecíamos as circunstâncias que trouxeram sua família para terras tão distantes. Difícil esquecer o dia em que soube os horrores que ela viveu tão nova.

Minha avó nascera em um pequeno vilarejo judaico localizado onde hoje é a Ucrânia. Havia apenas uma rua principal e casas simples ao seu redor, a família possuía um pequeno armazém de secos e molhados e vivia de seu comércio, como grande parte dos judeus, já eram proibidos de realizarem outra atividade econômica. A Rússia czarista nunca fora um lugar acolhedor para eles, muito pelo contrário.

“Tínhamos medo dos soldados russos que invadiam nossas casas e nos matavam só porque éramos judeus. Lembro-me de ficarmos escondidos entre o armário e a parede, sem respirar, para não sermos encontrados. Ouvíamos seus passos dentro de casa e não podíamos nos mexer, ou todos morreriam. Eu tinha muito medo.”

Não era um ser de outro mundo e fantástico que a aterrorizava, era a realidade crua da perversidade de outro ser humano que falava a mesma língua. O nome dessa caçada bárbara era Pogrom e fazia parte dos costumes dos nobres daquele país.

A família resolvera fugir para o Brasil, havia um primo que se lançara antes ao mundo e que os chamara para cá com uma carta-convite, documento imprescindível para imigrarem. Havia ainda o contexto de uma Guerra Mundial eclodindo e uma Revolução em seu país. Tempos conturbados nos idos de 1920. Eram refugiados, hoje temos clareza disso, mas na época não se usava esse termo.

Era preciso sair ao anoitecer para não serem vistos pelos soldados. O vilarejo situava-se à beira do rio Dniester, fronteira com a Moldávia e dependiam da boa vontade e interesse financeiro dos barqueiros para atravessarem a fronteira.

“O barco era uma casquinha de noz, só cabiam duas pessoas além do barqueiro. Fomos eu e meu pai no primeiro barco e minha mãe e minha irmã viriam logo em seguida. Estava muito escuro e tínhamos que fazer silêncio porque os soldados podiam atirar.”

Ela chegara bem com o pai na outra margem, onde já não eram mais perseguidos, mas sua mãe e sua irmã não apareciam. A noite avançava em direção ao amanhecer e a chance de sobrevivência ia diminuindo. Com os primeiros raios de sol surgiu o barquinho de sua mãe. Estavam todos salvos.

Minha avó tinha 5 anos. Aquela narrativa era vívida e de uma riqueza de detalhes, que me chamara atenção, como uma lembrança que não se deixava esquecer porque fazia parte de quem ela era. Lembro-me de ouvir a descrição de sua fuga com um misto de espanto e admiração. Aos meus ouvidos de criança, era como um filme de aventura com um final feliz. Hoje tenho a real dimensão do horror e da dor de arrancar suas raízes à força para sobreviver. Uma marca indelével na alma.

A vida se reestruturou, encontraram uma comunidade que os acolheu no Brasil e fez daqui seu lar, cerzindo o esgarçamento da perda da terra de seus antepassados com o afeto destinado aos seus descendentes. A história costura os tempos, as narrativas de vida dão nome ao horror, mas também ao amor, e fazem caber na alma esse turbilhão de emoções.

Sua terra natal, no entanto, voltou a ser palco de uma nova Guerra nos dias de hoje, e novos rostos de refugiados trazem as marcas do desespero e medo que provavelmente estamparam-se no rosto de minha avó e de sua família, atualizando o sofrimento da ruptura de um mundo que não existe mais. Que a nossa linha do amor seja suficiente para costurarmos os estragos de tanta destruição.

4 Comments

  • Lilia Anau Smith disse:

    Ah ❣ Marina, que relato maravilhoso ❣ Até as tristes memórias você consegue Adoçar – Parabéns ❣ Vou compartilhar… 🥰

  • Tatiana disse:

    Muito emocionante! Nossos antepassados vieram da mesma vizinhança. Vou me agarrar na sua linda frase: ‘Que a nossa linha do amor seja suficiente para costurarmos os estragos de tanta destruição”, para aliviar a dor de ver atrocidades se repetirem novamente… Tati Lerman

  • Roberto Smith disse:

    Marina, que bom ler suas palavras escritas trazendo as recordações da vovó e o medo que não se acaba. Eu que ouvi a mesma fonte, só lástima não ter ouvido mais das nossas histórias. Perdas…

  • Samantha Mucci disse:

    A Marina compartilha histórias emocionantes de sua vida que nos levam para cantinhos de nossas memórias e nos deixam com esse sentimento de saudade, doce e leve… nos preenche a alma ao fazer nos lembrar da dor da ausência mas também do amor envolvido em nossas vivências. Especialmente, esse texto nos remete a dor e a tristeza de milhares de famílias refugiadas que estão, atualmente, deixando seus lares, suas vidas, rumo ao novo e desconhecido… mas também nos traz esperança de que os refugiados possam ser acolhidos e transformarem sua história de dor em amor!

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