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E sonhos não envelhecem

Coluna

Tecendo histórias sobre o Luto

Foto de @eber.lein_fotos

Por Marina C Smith

E sonhos não envelhecem

Num domingo qualquer, qualquer hora, ventania em qualquer direção, foi assim que encontrei o Milton em sua despedida dos palcos. Milton, só Milton, na intimidade de quem fez parte da trilha sonora da minha vida. Milton é Nascimento. A ventania em qualquer direção nascia dentro de mim a cada música dessa celebração, como uma biruta enlouquecida, eu tentava abarcar em mim as inúmeras memórias afetivas que transbordavam junto com a voz ainda firme desse trovador.

Durante toda a apresentação, a ideia de que era uma última sessão de música, me fazia imaginar o quanto as despedidas são tocantes. Poder celebrar o que se construiu tendo o fim como perspectiva, é uma experiência agridoce. E lágrimas não puderam deixar de rolar nesse encontro que era uma despedida. Na plataforma da estação tem os que chegam e os que se vão, a vida e a morte no mesmo trem, não em sentidos opostos, mas entrelaçadas na mesma jornada. Nesse encontro elas estavam de mãos dadas.

E a trilha sonora da vida foi trazendo lembranças, sobretudo de minha mãe, quem me apresentou o Milton e o punha na vitrola para tocar entoando em sua voz doce o “lá, lá, lá, lá, lá” dos Bailes da vida. Meu irmão não podia pegar o violão, que lá vinha o convite para que cantassem juntos que a alma estava repleta de chão buscando o caminho que ia dar no sol. Desse chão da vida, Milton trazia as lembranças do que eu era.  Fui pensando em como cada verso familiar brotava em minha boca vindo de algum lugar da alma no qual não se fazia necessário esforço para encontrá-los. Estavam lá, parte do tecido de quem sou, numa trama que compartilhava com todas as outras pessoas à minha volta naquele dia. Que experiência forte é essa de pertencer a uma época. Amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito – quem nunca cantou Canção da América na festa de formatura? E a força e a graça das Marias que somos todas nós? É Milton, é preciso ter sonho sempre.

Milton já dizia que o Cuitelinho não gosta que o botão de rosa caia, nada mais triste do que não poder desabrochar. E no processo de abrir o botão da flor para a vida, lembrei da minha professora de violão, que me apresentou tantas preciosidades da música brasileira. Não desabrochei como imaginava para o violão, uma pena. Ainda lembro da sua caligrafia desenhando os acordes sobre a letra da música em caneta vermelha e me mostrando como se dedilhava a arte. Mas outras flores desabrocharam em mim ali.

Lembrei também das profundas conversar com a minha cachorra na pré-adolescência, era minha confidente silenciosa dos dramas que se desenrolavam nessa estrada de terra na boleia da vida. Era paciente e parecia apreciar o cantarolar da música que longe se vai sonhando demais, mas onde se chega assim?  Descobrindo o que me fazia sentir, eu caçadora de mim.

E para quem quer se soltar, Milton inventou o cais, de onde os barcos partem e para onde podem sempre voltar. E suas músicas são como portos-seguros onde os sonhos não envelhecem. Ele me ensinou que posso inventar o mar, inventar em mim a sonhadora porque de tudo se faz canção.  Nesse dia estávamos nesse cais, todos juntos, emocionados pela despedida de um artista que soube a vez de se lançar.

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