Coluna
Tecendo histórias sobre o Luto
Foto de @eber.lein_fotos
Por Marina C Smith
O piano na coxia
Não se lembrava com precisão como sua relação com o piano começara. Era como se ele estivesse sempre presente em sua vida, tocando no compasso de sua existência.
Desde pequena era sabido em sua família que tinha um talento especial, não desgrudava do piano, e quando não estava perto deste, tamborilava os dedos em teclas imaginárias reproduzindo as melodias em sua mente. Estudara primeiramente com uma vizinha que fora professora de piano em um importante conservatório, aprendera com ela a decifrar as partituras. E fora essa vizinha quem conseguira uma bolsa de estudos nesse mesmo conservatório alguns anos depois.
Participava de pequenos concertos e nesses momentos sentia que estava onde deveria estar, havia um senso de propósito e de sentido que permeavam seus dedos ao dedilhar de cada acorde. Acreditava que havia uma vereda a ser trilhada na música que se revelava ao abrir seu piano. Mas nem sempre as veredas seguem como se imagina, uma bifurcação importante e de repente, o caminho toma outro rumo.
Era nova, os tempos eram outros. As perspectivas de realizações femininas passavam necessariamente pelo casamento e pela maternidade. E não foi diferente com ela. Casou-se com um homem provedor que esperava que cuidasse da casa e dos filhos que teriam, e ele logo decretou que não haveria espaço para seu piano, que este era uma distração desnecessária para seus afazeres. Não discutiu, resignou-se e despediu-se do seu piano dizendo a si mesma que isso era o certo a se fazer, que em seu horizonte estava uma vida correta, direita, com as realizações que se esperavam dela.
O piano foi parar na casa de um irmão para enfeitar sua sala e virar peça empoeirada de museu. Ninguém mais ousou tocá-lo, havia um sentimento de pesar que impregnou suas teclas. Com o tempo, passou de mãos em mãos na família até que se perdeu notícia de seu paradeiro.
No início da nova jornada, caminhava com o piano guardado dentro de si, fazia pequenas visitas em breves devaneios, relembrando melodias e arranjos, mas com o passar do tempo, essas escapadas traziam mais melancolia do que prazer. Resolveu parar. Adentrou-se no caminho que escolhera e deu às costas à outra estrada que ficou para trás, junto com seu piano. Não ousou mais visitá-lo, nem em pensamento, havia o temor de que ao encontrá-lo não conseguiria mais justificar sua vida sem ele. Precisava tirá-lo de seu horizonte, deixar que as melodias se desvanecessem em sua memória, trancando essa parte de si em um profundo calabouço com pesados cadeados. Transformou-se em carcereira e prisioneira de uma parte de seu destino que não poderia realizar-se.
A vida não foi fácil, mas também teve suas alegrias, como acontece com muita gente. Gostava de cuidar de sua família, sentia-se útil e ocupava sua mente. Seu marido partiu cedo, depois de uma doença incapacitante. Teve que continuar sua jornada sozinha com os três filhos. Pensava em seu piano? Não muito, acostumara-se a viver sem ele, dia após dia, com as demandas infinitas da vida cotidiana, silenciara essa parte de sua vida, era uma recordação de outros tempos e quase podia lembrar-se sem sentir que se mutilara em alguma medida.
Até que não pode mais. Aconteceu de maneira súbita, inesperada, quando pensava estar imune aos apelos desta vereda soterrada. Os cadeados do calabouço foram arrebentados de uma só vez quando, certo dia, entrou em um anfiteatro ainda vazio, em busca de um lugar para assistir à cerimônia de formatura de sua neta mais velha. O som vinha da coxia, solitário e singelo. Não se via quem tocava. Com a garganta apertada, foi caminhando até o palco, e sem ser percebida, passou pela cortina que desvelou uma jovem ao piano, ensaiando os acordes de um concerto que sabia de cor. Na coxia de sua vida, aquela jovem ainda existia, e poder reencontrá-la era sinal de que ainda poderia trazê-la ao palco. Atirada novamente àquela bifurcação na estrada da vida, perguntou-se: foi aqui que me perdi? Seu piano estava lá, um pedaço de si mesma apartado por tanto tempo que sobrevivera. Encontrou-o. Encontrara-se. Pediu licença à jovem e experimentou a fruição de estar inteira novamente com a música que suas mãos não se esqueceram de tocar. E uma nova vereda se abriu.