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Coluna

Tecendo histórias sobre o Luto

Por Marina C Smith

O pomar

Quando a conheci ela logo me disse que eu iria me espantar com as
suas histórias. Era uma instigante abertura introdutória, sem dúvida, e
prontamente capturou-me em sua rede de Sherazade. Ela se queixava de
seu corpo, que há muito doía, inflamava, retesava e a impedia de seguir
seu ofício na máquina de costura. Achava que havia algo dentro de si que
estava esgarçado.

Mas não era essa a história que queria me contar. Ela vinha de uma
família de muitos irmãos, era a primogênita e ajudou sua mãe no cuidado
dos pequenos que chegavam ano sim, ano não. Viviam no sertão, seu pai
tinha umas terrinhas que cultivavam. Tudo era longe e o socorro quase
nunca alcançava o tempo da cura, por isso a morte era companhia
constante. Dizia que alguns irmãos não vingavam, e mesmo sua mãe, um
dia fora levada, ainda jovem, depois de parir o caçula. Fazia muitos anos,
mas ela ainda lembra do vazio que sentiu quando não havia mais o
barulho da mãe na cozinha de casa.

O pai casara-se novamente e a nova madrasta ressentia-se da sua
presença. Uma paixão a arrancou de casa, mas não durou o suficiente
para, em sua metáfora do que permanece, “vingar” uma história de amor.

Com a desilusão, descobriu-se grávida de seu primeiro filho. Outros
vieram e com eles novas decepções amorosas.

Logo conheceu a dor da separação dos filhos, deixara-os com
familiares, ainda pequenos, para vir à São Paulo buscar sustento. Iniciou
um movimento de idas e vindas, sertão-capital-sertão-capital-sertão-
capital, tentando costurar uma presença na intermitência de suas
ausências. Orgulhosa, conta como os filhos cresceram, casaram e hoje lhe
deram netos. Estão bem, fez o que tinha que fazer.

Mas por que as dores não a deixam em paz? Algo lateja sem parar,
sem parar. E sem parar, ela continua alinhavando sua história de perdas e
decepções a cada encontro nosso. Gosta de me falar que nunca contara
isso para ninguém antes, e gosto de acreditar nisso. Não busca uma
palavra minha, apenas meus ouvidos, logo percebo que meu lugar é de
testemunha.

Comigo repete o movimento de ir e vir, mantém uma casinha em
sua terra natal e viaja alguns meses para se reabastecer da saudade. Lá,
ela diz, as dores a deixam em paz. Conta do sabor das frutas das árvores
de seu quintal, os cajus, as goiabas, as laranjas, as amoras e os caquis.

Todas são mais doces e suculentas do que as frutas das feiras de São
Paulo. Insiste que eu preciso provar e promete que um dia irá me trazer
um bocadinho. Como boa costureira, vai cerzindo pedaços de si mesma,
antes esburacados pela morte e pela crueza da vida.

Eu vivia a experiência de esperá-la voltar, e como Sherazade, ela
deixava sempre um pedaço de linha solta para que pudesse retomar sua
narrativa quando o entardecer das férias a trouxesse de volta ao asfalto
esfumaçado, onde as frutas não têm gosto. Aquele corpo que parecia se
desfazer, não mais a assombrava, às vezes a incomodava, como uma dor
em dias frios, lembrando que as cicatrizes ainda estavam ali, mas não
sangravam mais como antes.

Um dia me disse que iria se mudar definitivamente para sua casinha
com seu pomar, o marido estava se aposentando. Trouxe fotos para eu
conhecer as árvores de que tanto falava e desculpou-se por não ter
podido trazer as frutas. Mal sabia ela, que havia trazido muito mais. Ou
talvez soubesse, depois de meses após nossa despedida, recebi uma
mensagem dela com uma palavra: saudades.

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