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A Gaveta Lacrada

A Gaveta Lacrada

PROALU - Programa de Acolhimento ao Luto

Foto: Stephan Streuders

Por Priscila Morozetti Jarró

A poucos dias do Natal já escuto o tilintar das panelas, o alvoroço na cozinha e o cheirinho de ervas e vinhos que invadem minhas memórias. Lembranças vívidas em mim e em tantas narrativas que tenho a oportunidade de ouvir. As humanidades se encontram e trazem a sensibilidade da experiência para a cena.

Da mesma forma o estranhamento do último momento partilhado.

Você já parou pra pensar qual foi a última vez que esteve com quem ama antes dele(a) morrer?

Me recordo de tantas falas incrédulas, cheias de saudade e dor ao se depararem com um último momento. Atípico. Inesperado. Sem contexto.

É o homem viúvo que perplexo narra que, já na porta de casa para ir ao trabalho, retorna ao quarto e dá um beijo demorado na esposa que horas mais tarde sofre um infarto e morre.   É a mãe que se lembra aos prantos do pedido feito ao filho para não ir ao trabalho e no meio da tarde recebe a notícia que seu filho fora assassinado em um assalto. O marcador da impermanência da vida tocando sua nota mais alta, ensurdecendo amores e amigos com a dor intensa da despedida.

As experiências de vida e de morte são permeadas por crenças. Familiares, religiosas, culturais, sociais. Crenças que trazem significado ou não mais. Crenças que são questionadas e mudam o curso da vida.

Na última partida que ocorrera em minha família lembro de me questionar sobre a “gaveta” lacrada do túmulo onde já estavam minha bisavó, tios avôs e avó paterna. Meu pai naquele momento dá resposta ao que me inquieta e eu sou levada como em um flash às histórias contadas por minha avó, já morta.

A “gaveta” lacrada delineia as crendices que me originam. Ela abriga um corpo intacto mesmo depois de décadas de sepultamento. Abriga também histórias. Muitas histórias! Se são verdadeiras? Isso eu já não sei! Mas são essas histórias que costuram fatos e fantasias, dor e amor. E tudo isso faz parte de mim.

E para aqueles que, clinicamente ou não, se propõem a ouvir histórias de perda e dor, convide a sua sensibilidade e disponibilidade de escuta para o centro, e deixe seus pré-conceitos de lado para adentrar na grandeza do mundo novo e dar espaço para quem assim o vive construir seus próprios significados.

Não nos cabe questionar! Apenas estar junto!

 

Priscila Morozetti Jarró, CRP 06/113093

Psicóloga, sócia cofundadora do VOA Instituto de Psicologia, especialista em luto e em teoria do apego.

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