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Ajuntar cacos com criatividade, transformando a arte de viver.

By 18 de agosto de 2022abril 17th, 2023ACOLHIMENTO

Ajuntar cacos com criatividade, transformando a arte de viver.

PROALU - Programa de Acolhimento ao Luto

Foto de Taryn Eliott

Por Glaucia Rezende Tavares

Psicóloga, Cofundadora e Presidente da Rede API –
Diretora científica da ABMLuto – Associação Brasileira Multiprofissional de Luto

“A necessidade de relacionamento pode ser satisfeita pelo amor ou pelo sadismo, a necessidade de estímulo e excitação pode ser satisfeita pela criatividade ou pela busca insensata de prazer”. Russell, J.B.

O título deste trabalho surgiu em um dos encontros do API. Foi a primeira vez que convidamos uma pessoa que não tinha história próxima de perda, para fazer um trabalho com o grupo. Certamente foi um encontro abençoado. Esta pessoa é a Simone Villani, uma artista plástica que, entre tantos atributos, oferece cursos de mosaico. Ao ver, no seu cartão, a palavra CACO, tive a intuição de que esta técnica poderia ser utilizada, como uma bela metáfora, pelos componentes do API.

Fiz o convite e fui conhecer, junto com os outros participantes do grupo, a riqueza que este material pode oferecer. Ao ver todo o grupo “ajuntando os cacos”, nasceu a expressão. A partir daí as idéias começaram a fervilhar e produzi este trabalho. Posteriormente, fiz o curso completo de mosaico, junto com Ivana, minha filha, e com minha querida amiga, sobrinha e comadre Marília. As possibilidades para ajuntar os cacos são inúmeras e, hoje, quase me reconheço como artista neste ramo…

O que faz a arte?

É o gesto do artista que arranca a coisa do seu contexto de desordem e falta de sentido, e a eleva à condição de coisa bela. A grande arte não é exclusividade de quem vive sobre os palcos ou em museus, é a introdução da beleza em nosso cotidiano, uma beleza criadora, que não se reduz pela mera cópia de modelos prontos e nem por uma estética desarticulada de uma ética.

Fazer arte pode ser a utilização, de maneira respeitosa, da energia da raiva, diante de experiências que nos contrariam, sendo direcionada para ações que façam sentido. Esta transformação interna tem ressonância no externo e a transformação do externo tem ressonância no interno.

“Transformar-se é transformar o mundo porque nada está separado” (Jean-Yves Leloup).

 Este é o caminho da aceitação, diferente de uma atitude passiva, resignada e desistente, para o exercício de dizer um sim responsável, mesmo àquilo que não pedimos e não gostamos que nos aconteça.

Usar a energia da agressividade não de forma destrutiva, mas no sentido etimológico: ir em direção a alguma coisa, de preferência que faça sentido, e de acordo com nossos valores.

A vida, a arte e o trabalho terapêutico, assim, se afinam. Todos se orientam para uma constante busca de sentidos escondidos em fragmentos. São variações sobre a capacidade de buscar sentido, valor interno, além da imagem e da aparência superficial. É a transformação mágica de pedaços frios, com ausência de sentido, em forma viva e quente.

Não é fácil exercitar o ato criativo, ele nos coloca diante do novo, ainda não provado e nem aprovado por nós e principalmente pelo meio que nos circunda. É o resgate da construção criativa, gerando infinitas possibilidades, que nos coloca em contato com uma série de pressões que recebemos e ficamos muito tentados a negá-las ou fugir delas. É também pelo reconhecimento do ato criativo que constatamos que não existem fatos isolados e sim a maneira peculiar como cada pessoa lida com estes fatos.

A criação é um diálogo em andamento com a realidade. Requer a paciência da procura e escolha entre as centenas de “lascas-estímulos” percebidos e vividos. Há uma maneira, fecunda e criativa, de escutar, de fazer e de viver, buscando articular e integrar. Cada parte, quando articulada, deixa de ser parte isolada, integrando-se em uma nova configuração.

Esta é uma grande conquista: sair da condição de parte para contribuir a um todo maior; transformar objetos-fragmentos em figuras inteiras.

 

Achados e perdidos

 Maria Antônia de Oliveira

 

 “A vida se retrata no tempo

Formando um vitral,

De desenho sempre incompleto,

De cores variadas,

Brilhantes

Quando passa o sol.

 

Pedradas ao acaso

Acontece de partir pedaço,

Ficando buracos,

Irreversíveis

Os cacos se perdem

Por aí.

Às vezes eu encontro

Cacos de vida

Que foram meus,

Que foram vivos.

 

Esses me causam tanto encanto

Quanto causavam

Os cacos

De prato quebrado,

Que eu procurava,

Para brincar de casinha.

 

Examino-os tentando lembrar

De que resto faziam parte.

Já achei caco pequeno e amarelinho,

Que ressuscitou,

De mentira,

Um velho amigo.

Achei outro pontudo e azul,

Que trouxe em nuvens

Um beijo antigo.

Houve um caco vermelho,

Que muito me fez chorar,

Sem que eu lembrasse

De onde me pertencera.”

 

Assim, como no mosaico, na sucata, no patchwork e na escultura de pedras, também na arte do viver o valor está exatamente no esforço de articular as partes do vivido e organizá-las, de forma inteira e íntegra. É este esforço de conjunto que faz a magia de transformar fragmentos sem sentido em integração, causando a diminuição do nosso auto-desconhecimento.

Temos atração pelo pronto e acabado, mas é exatamente a capacidade de conviver com a instabilidade, articulada à esperança de integração, que possibilita ajuntar os pedaços, como diz Chico Buarque em uma de suas canções:

“Oh! Pedaço arrancado de mim…

oh! Metade arrancada de mim…

A saudade é o revés do parto.

A saudade é arrumar o quarto

Do filho que já morreu…”

Para se dar tal integração é necessário “paz-ciência“, ou seja, aceitação da espera, do adiamento, do não acontecer no tempo que impomos. Não deve haver pressa, a despeito de tantas pressões, deve-se esperar e reconhecer o momento fértil. Há o desenvolvimento da capacidade de lidar com habilidade e competência com as nossas frustrações. À medida em que vamos nos integrando, esta integração vibra, transpira, influencia e é influenciada. Há troca, há expansão da nossa sensibilidade, que se manifesta nos quatro níveis do ser: o cronológico, o existencial, o experencial e o experimental.

“O artista não é um tipo diferente de pessoa, mas cada um de nós é um tipo diferente de artista” (John Chapper).

Nossa mente vai operando a capacidade de juntar e transfigurar todos os pedaços da experiência. A sensibilidade se materializa na busca constante de soluções. Ninguém opera sozinho, nenhuma conquista é solitária! Não há auto-suficiência e sim, progressivo e interminável, um processo de conquista de competência.

“Competência se conquista com os pés da idade” (Guimarães Rosa).

O vivido, como nas obras de arte, mesmo que colado, re-ajuntado, pode e deve ser continuamente ressignificado e reavaliado. É por aí que anda a nossa saúde emocional. Da saída do colado, da rigidez do para sempre, do definitivo, para o constante movimento reflexivo.

Como diz Walter Ribeiro:

 “…do inacabamento constitui a essência. Não estar em andamento é fixação, é estagnação. Isso também nos incomoda e dificulta porque gostamos de estar mais seguros, ter solos mais firmes, verdades mais prontas e acabadas. … somos prisioneiros da ‘Política da Certeza’, verdadeira erva daninha que grassa em nossa cultura, alimentada pela ilusão e pelo mito de que as coisas exatas nos protegem e nos garantem… A tentação da ‘Política da Certeza’ nos leva à nossa alienação, ao distanciamento do vivido. Daí a necessidade da criação do grande tratado de verdades que deve reger a todos”.

Proponho que ajuntemos nossos cacos através da inspiração não de um grande tratado e sim do “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, de André Comte-Sponville, que aponta para o esforço do trabalho em conjunto.

“As coisas que se harmonizam em tom, vibram em conjunto” Richard Wilhelm.

O toque em uma das partes repercute no conjunto. Como seres humanos nascemos inacabados, nascemos para ir além. Transformamo-nos em adultos quando somos capazes de criar nossas vidas de forma significativa.

Virtude, portanto, é excelência que, em grego, significa ir além. Virtude é o esforço de manter no centro, entre duas naturezas (ou tendências opostas), bondade e maldade, sem parar em nenhum dos extremos. A virtude começa com a qualidade. Se não for além, em direção à verdade, não é virtude. Hierarquicamente colocamos a qualidade na base, o esforço no meio e a virtude como topo.

Assim é a virtude: “é o esforço para se portar bem” (Comte-Sponville). A capacidade de agir bem, considerando-se que o bem não é para contemplar, é para se fazer.

“Toda virtude é um ápice, entre dois vícios, uma cumeada entre dois abismos: assim a coragem, entre a covardia e temeridade, a dignidade, entre complacência e egoísmo, ou a doçura, entre a cólera e a apatia” (Comte-Sponville).

 As virtudes não podem ser compreendidas apenas como regras fixas, mas como realidade que, continuamente, se modifica. Fazem parte das experiências que a pessoa vive e são produtoras de emoções. O valor das virtudes está no seu conjunto. Assim como as notas de uma melodia, não podem ser compreendidas isoladamente. O que é significativo é a totalidade. Se houver alteração em uma das virtudes, por uso excessivo ou desuso, todo o conjunto se alterará. Assim, a reorganização de cada uma das virtudes terá ressonância no todo. Este conjunto das virtudes deverá ser compreendido como algo dinâmico, podendo ser alterado de acordo com as contínuas influências do meio. Qualquer tentativa de análise das virtudes, isoladamente, significa a destruição, a eliminação das características estruturais do fenômeno que se pretende estudar.

Mais uma vez, é na capacidade de conviver com a instabilidade, articulada à esperança de integração, que, ajuntando os pedaços, nos direcionamos ao processo evolutivo.

A questão não é ficar preso a explicações sobre quebras, rupturas, cacos nas vidas das pessoas. É preciso que se disponha a ir além, com sentimentos de esperança e disposição para trans-formar cacos em novas configurações.

Trans-formar é ir além da forma, saindo da fôrma cristalizada, estagnada e engessada, buscando, via imaginação e criatividade, novas configurações.

Temos o desafio de usar a energia da agressividade, acionada por aquilo que nos contraria, não no sentido destrutivo, mas construtivamente, transformando-a em criatividade.

Uma postura transformadora é aquela em que o perceber, sentir, pensar e agir se articulem, levando à ampliação da consciência e resultando em uma totalidade significativa. Este ser integral trabalha sua consciência, coerência e consistência, em permanente organização da relação pessoa-mundo. Este processo de mudança implica em busca constante de solução de problemas, que em situações anteriores representavam fixidez, paralisia.

Esta passa a ser uma forma de ser-no-mundo, não como expressão geográfica. É uma forma de existir e coexistir, de estar presente, convivendo com a realidade e relacionando-se com as coisas do mundo. A partir desta coexistência e da convivência, nesse jogo de relações, o homem vai construindo seu próprio ser, ampliando sua sensibilidade e consciência, buscando diminuir o seu auto-desconhecimento.

Leonardo Boff comenta que:

“há dois modos de ser-no-mundo: o trabalho e o cuidado… O cuidado não se opõe ao trabalho mas lhe confere uma tonalidade diferente. Pelo cuidado não vemos a natureza e tudo que nela existe como objetos. A relação não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito”.

A partir desta forma de ser “cuidadosa”, veremos que a noção de justa medida é uma das ressonâncias que nos interessa aqui abordar. A vivência de justa medida articula três aspectos que não se dissociam e influenciam toda e qualquer configuração: as noções do todo, da organização e da sensibilidade.

Hoje, mais e mais, estamos convencidos de que nada pode ser reduzido a uma única causa ou fator. No mundo dos fenômenos vivos temos que abandonar a representação linear. As relações são complexas e vêm urdidas de inter-retro-relações e de redes de inclusões. Por isto precisamos articular a noção de um todo, organizado, segundo a sensibilidade; ou organizar a sensibilidade segundo o todo; ou sensibilizar a organização para o todo ou quantas mais combinações possíveis. Ser capaz de articular estas três instâncias é ver cada porção dentro de um todo articulado, levando à figura de um mosaico, composto de milhares de cacos, um deslumbrante bordado, feito de mil fios coloridos.

“A natureza vista como um todo não impõe prescrições. Aponta para tendências e regularidades que podem ir em várias direções. Cabe ao ser humano desenvolver uma sensibilidade tal que lhe permita captar essas tendências e tomar suas decisões. A natureza não o dispensa de decidir e de exercer sua liberdade. Só então ele se mostra um ser ético” (Leonardo Boff).

A noção do que é medida justa, muda. Só não muda a busca permanente da medida justa, que varia segundo os recursos disponíveis da pessoa em cada momento.

“… o cuidado surge quando se encontra a justa medida. Este é o caminho do meio entre o modo-de-ser do trabalho como exploração e o modo-de-ser do cuidado como plasmação. Por isso o cuidado não convive nem com o excesso e nem com a carência. Ele é o ponto ideal de equilíbrio entre um e outro” (Leonardo Boff).

É tarefa humana esforçar para prestar atenção ao todo, organizado e articulado ao detalhe, com sensibilidade. É um aprendizado que requer escolha voluntária, colocando-nos como artesões de nossa humanização.

O exercício das virtudes é este esforço contínuo, requisitando reposição diária, é um exercício que está longe da perfeição, mas que se aproxima da plenitude, que é ter um pouco do que é essencial.

Não é trabalho feito em uma única direção. Uma pessoa muito prudente está longe de ser corajosa. É uma tragédia ser generoso, sem justiça e sem coragem. São questões que não se nasce sabendo e que requerem escolha do aprendizado diário. O mecanismo da escolha está associado à sensibilidade. O talento é um dom nato, a virtude, em conjunto, é exercida por esforço, diariamente.

Virtude é amar a verdade, mais do que a si mesmo. Os orientais chamam virtude de modéstia, ter características bem dosadas. A própria modéstia, se excessiva não é modéstia.

Virtude, como ética, só acontece nas situações adversas, nos momentos em que nos deparamos com nossos cacos. Precisa-se de medo para se exercitar a coragem, da avareza para exercitar a generosidade, da maldade para exercitar a misericórdia.

Generosidade e misericórdia são “virtudes-eixos”, que organizam a sensibilidade no todo. Generosidade é o reconhecimento de que, a despeito da má índole de uma pessoa, ela também tem bondade. Misericórdia é o reconhecimento de que, a despeito da bondade de uma pessoa, ela tem maldade e nem por isto deixará de ser considerada.

Transformar o caco da inveja na arte da admiração é nos exercitar na evolução da condição de “ser humano” para a de “ser humanizado”. A virtude da prudência aponta para a cautela, com o tempero da ousadia, na medida em que há alguns riscos que são essenciais serem corridos.

A função deste trabalho é conectar a pessoa ao esforço de integração destes atributos, para que levem à ampliação de sua consciência. O esforço de integração das virtudes, como num mosaico, amplia as condições das pessoas, desenvolvendo potencialidades, que aumentam a auto-confiança e a auto-referência, condições indispensáveis para a relação consigo, com os outros, com a vida.

 

Referências Bibliográficas:

BOFF, L. “Saber Cuidar”. Petrópolis, Editora Vozes,1999.

COMTE-SPONVILLE, A. “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

NASCIMENTO, Z. Anotações de aulas proferidas em seu curso de “Pensamento Sistêmico”.

RIBEIRO, W. “Existência-Essência: Desafios Teóricos e Práticos das Psicoterapias Relacionais. São Paulo, Summus, 1998.

ROSA, J.G. “Grande Sertão: Veredas”. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1972.

WILHELM, R. “I Ching, o livro das mutações”. São Paulo, Pensamento, 1989.

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