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LUTO E RESILIÊNCIA

LUTO E RESILIÊNCIA

PROALU - Programa de Acolhimento ao Luto

Sempre acreditei que as longas enfermidades de entes queridos nos preparam para a perda que virá. Hoje acredito que isso só vale para quem tem elevada resiliência, e ajuda a quem tem moderada resiliência, mas pouco contribui a quem tem baixa resiliência. Para estudar a resiliência em adultos criei e validei a escala ERS, específica para a cultura brasileira, com a premissa de que a cultura afeta a atitude existencial dos indivíduos, e resiliência é sobretudo uma atitude existencial perante a vida.

Na ciência há consenso de que a resiliência não é estável: ela flutua ao longo da vida. Decorre daí a noção de que a resiliência é uma capacidade, que prefiro chamar de competência, porque pode ser aprendida e aprimorada. Crianças geralmente apresentam elevada resiliência frente às adversidades, enquanto que um terço dos adolescentes perdem essa resiliência, comprovada quando se tornam drogaditos (a ciência precisa estudar essa relação). Noto que adultos ao começarem a trabalhar elevam sua resiliência, sobretudo jovens carentes com precária escolaridade e contexto de vida. A rota de carreira vitamina em todos a resiliência, contudo traumas e acidentes graves a derrubam. A aposentadoria e, sobretudo a terceira e quarta idades derrubam a resiliência sobretudo em depressivos.

Relato como eu vivi meu luto, usando como moldura conceitual os fatores que afetam a resiliência.

Resiliência

Uma análise fatorial exploratória revelou nove fatores que compõem a resiliência. Com uma amostra de 1500 alunos de pós-graduação validei a escala ERS. Posterior análise de equações estruturais revelou que não havia relação entre os fatores. A resiliência é um construto formado a partir do sistema de nova fatores. Deduzo que não adianta operar apenas sobre o fator de pior desempenho na escala: é preciso se educar para ampliar o conjunto de fatores. Os escores em cada fator foram ajustados para uma escala de 1 a 100, bem como o escore geral de resiliência.

Uma análise de agrupamentos (cluster) revelou quatro grupos, dois deles notadamente de alta e de baixa resiliência, cada um. Curioso é que os dois grupos com moderada resiliência permitiram notar um estilo ou arquétipo masculino e outro feminino. O arquétipo feminino da resiliência continha 63% de mulheres e tinha maior pontuação média na ERS de competência social, otimismo aprendido e empatia – e menor média em temperança, flexibilidade mental e solução de problemas. Bem feminino. O grupo masculino (com 57% de homens) apresentava maiores médias em solução de problemas, otimismo aprendido, competência social e autoeficácia/autoconfiança – e menores médias em empatia e flexibilidade mental. Bem masculino!

Assim que a escala foi validada, eu a apliquei em mim: queria conhecer meus escores. Fiquei supreso meu escore global estava na fronteira entre a baixa e moderada resiliência e meu estilo era feminino (indicativo da fronteira entre baixa e moderada). O uso de escalas psicométricas, mesmo quando baseadas em autoavaliação, evitam essa racionalização. Queria sair dessa posição, então passei a buscar com pessoas com evidente resiliência elevada as táticas que adotavam quando ela era posta à prova. Uns usavam água, outros música, outros praticavam esportes radicais, alguns iam para a oficina praticar hobbies. Passei a praticar algumas dessas táticas. Anos depois meus escores de resiliência subiram um pouco. Não sei se foi efeito dessas práticas ou se resultou de maior autoconhecimento. Todavia, a pandemia me levou ao fundo do poço pela conjunção de fatores: uma “tempestade perfeita”. Entendi que aprimorar a resiliência é esforço para a vida toda, e vale a pena.

Dentre seis mil pessoas que usaram a escala ERS, 30% apresentam elevada, 40% moderado e 30% baixa resiliência. Essas proporções são compatíveis com as pesquisas com quem viveu estresse pós-traumático. Estudei muito o estresse, e até fiz pesquisa comparando escores em estresse e resiliência, sem sucesso pois a proporção de muito estressados em minha amostra não foi suficiente para a validação estatística dessa relação. Julgo mais relevante estudar resiliência que estresse. Até por que é mais fecundo educar para a maior resiliência do que precaver-se de traumas e crises.

Luto

Assim que fechado o prognóstico da doença de minha esposa, deixei de trabalhar para cuidar dela e de minhas filhas. Antes mesmo do desfecho tomei antidepressivos, sob supervisão médica. Desempenhei bem tudo o que foi exigido, mas à custa de muita energia psíquica, encoberta pelo uso da medicação. Quanto mais veloz a progressão da doença, mas ela aguça pensamentos catastróficos, a sensação de perda de controle e a ruptura da linha da vida. Sinais de crise e de trauma, que eu vivi de modo atenuado. O luto havia começado em minha mente. Depois da morte dela, viajei com minhas filhas para ampará-las. Surpresa: elas tentavam cuidar de mim tanto quanto eu delas. Elas eram adolescentes que perderam a mãe, algo que estudiosos consideram a maior fonte de distresse (estresse negativo).

Na primeira fase do luto, a mais sofrida, não pedi ajuda em meu círculo social. Esse é um dos comportamentos habituais de quem apresenta baixa competência social. Mas pessoas empáticas ofereceram essa ajuda, que aceitei relutante, possivelmente diante de minha razoável empatia. Cuidava da casa e da família, mas sem projetos para o futuro. Essa anedonia tanto era sintoma de depressão quanto revelava forte introversão, característica de minha personalidade. Minha autoconfiança não foi abalada, mas a autoestima sim.

A ruptura na linearidade da vida tem efeito nefasto: congela o propósito de vida, fator a que denominei proatividade na escala ERS. Substitui por outros propósitos: cuidar de minhas filhas, e escrever. Durante a doença e após a morte da esposa, dediquei-me furiosamente a escrever meu primeiro livro – Espirais do Conhecimento – publicado anos depois e que foi finalista do Prêmio Jabuti. Serviu para manter alguma racionalidade e sentido de continuidade numa vida dominada por sentimentos negativos. A memória sobre a falecida sofreu mudança: só recordava dos pontos positivos. Demorou anos para que houvesse uma integração com os negativos, à medida que eu integrava os meus na reflexão sobre o que vivemos.

Obeso e sem praticar atividade esportiva, só após validar a escala percebi que o condicionamento físico e a vida saudável ampliam a tenacidade, que é a capacidade de lidar com dor e sofrimento, um dos fatores da resiliência. Fiz muitos sacrifícios nesse período de luto, o que pelo menos sustentou alguma tenacidade pregressa. Decorrido um ano da perda, a diretora de RH de um banco que me contratava sempre para alguns trabalhos me telefonou e disse: “vamos trabalhar? Já teve tempo suficiente para viver a dor”. Foi um empurrão fundamental. Nos anos seguintes tive a maior produditividade em minha carreira como professor e consultor. De fato, a ludoterapia funciona, mas no tempo de cada um. Quanto maior a resiliência, menor o prazo para a vida “voltar ao normal” (que é o significado etimológico do termo latino resilire).

Há uma crença popular de que demora cinco anos para alguém superar a fase sofrida do luto. Acredito que esse é o tempo de superação para os de moderada resiliência. Os de elevada o superam em um ou dois anos. E os de baixa resiliência muitas vezes não se recuperam mais. Investir em relacionamentos afetivos vale a pena, com todas as dificuldades típicas da viuvez. Afinal, a troca de afetos promove a resiliência em diversos aspectos. Tantos anos depois da perda, aprendi a conviver com o luto residual, mas não recompus os relacionamentos afetivos.

Há similaridade entre o processo de luto e o de resistência a mudanças. Ambos passam por estágios similares até a aceitação da perda e da mudança. Isso se deve à flexibilidade mental, ligada ao apego ou desapego. Os de elevada resiliência resistem menos e por menor tempo às mudanças – são “champions” na terminologia empresarial. Para elas, alerto para a necessidade de respeitar o tempo de cada um ao induzir mudanças. Demorei a mudar de apartamento e a limpar armários e lembranças. No meu luto foi difícil aceitar o rearranjo do círculo social íntimo e a forçada mudança de rotinas. A reconstrução das relações consome tempo análogo. Como engenheiro civil, sei que as grandes reformas exigem muito mais que uma nova construção.

Um argumento importante: o otimismo aprendido é tão relevante na escala ERS quanto a autoeficácia/autoconfiança e a temperança. Eles são necessários tanto para a resiliência moderada quanto para a elevada. Sei que é difícil ampliar a temperança, capacidade de preservar as emoções longe dos extremos, coisa que só se consegue com a prática recorrente de meditação e mindfulness. Mas o otimismo aprendido é fácil de adquirir, e foi no meu caso. Trata-se da capacidade de contrapor pensamentos e emoções positivos quando estamos dominados por pensamentos e emoções negativas. Só precisa atenção (awareness). Nada de “pensamento positivo”, que é ilusório e autoengana, nem de “treinamento em sorrisos”: tive que aprender a contrapor pensamentos e emoções. Para Martin Seligman, que cunhou o termo, esse balanço é o segredo da evolução. Portanto, guarde seu pessimismo para dias melhores!

O esforço para enfrentar o luto fortaleceu tanto eu quanto minhas filhas, que amadureceram precocemente. É uma batalha diária e sutil. E multifacetada.

Uma observação necessária: muitos gostariam de usar a escala ERS no recrutamento e seleção de pessoal. Por isso não tornei pública a escala. Como a resiliência é uma competência, julgo inaceitável que alguém deixe de ser contratado por apresentar naquele momento, baixa resiliência. Uma empresa que se deseja responsável (ESG) oferece a seu pessoal meios para aprimorar sua resiliência.

Muitos perguntam sobre o efeito da religião sobre a resiliência. Como cientista, sou pragmatico no assunto. Todas as religiões acolhem, são empáticas, oferecem ajuda e estimulam o otimismo por meio da esperança. A prática religiosa contém táticas que elevam resiliência: preces/mantras, velas, comunhão etc. Portanto, sim, a prática religiosa é útil. O perigo é se fiar no destino, ou colocar o controle de sua vida em algum ente externo – pesquisas revelam que o locus de controle interno, que chamo de autoeficácia, é o principal atributo de empreendedores. O luto coloca em cheque a religiosidade dos afetados, comigo não foi diferente, mas não me apoiei nela.

Viver o luto nos torna humildes diante da fragilidade da vida, e é essa a principal aprendizagem quando o vivemos. Qual arrogante, vaidoso ou narcisista aprenderia com sua perda? A principal diferença entre quem tem moderada e elevada resiliência é o grau de aprendizado. Ambos enfrentam de modo funcional as adversidades, crises e luto, contudo os de elevada resiliência prosperam e se aprimoram.

O que não é possível evitar são as perdas que teremos ao longo da vida. Então, parafraseando Ana Cláudia Arantes, afirmo: o luto é um processo que vale a pena ser vivido.

Fonte: https://zagaz.work/luto-e-resiliencia

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